Revista Educação, 8 DE NOVEMBRO DE 2016.
Pesquisador
de educação, professor e reitor honorário da Universidade de Lisboa, António
Nóvoa propõe que IES criem “casa de formação docente” e se preocupem com a
identidade profissional dos futuros professores.
Professor catedrático do Instituto de
Educação da Universidade de Lisboa, em Portugal, reitor honorário da mesma
instituição e autor de mais de 150 publicações sobre ensino e docência editadas
em 12 países, António Nóvoa avalia que “historicamente, a universidade
manifestou grande indiferença à educação básica” e, consequentemente, à
formação de professores nas licenciaturas. Mas, segundo o pesquisador, ainda há
formas de o setor se reconciliar com os professores, que são, em verdade, os
instrutores básicos de todos os futuros universitários.
Dentre os caminhos para isso, o pesquisador português
aponta a necessidade de as IES terem um comprometimento sério com a formação
docente, criando, por exemplo, departamentos direcionados a pensar como e por
que é importante formar professores em licenciaturas que podem – e devem –
estar mais integradas.
Essas e outras ideias foram expostas pelo pesquisador em
entrevista à Ensino Superior concedida em São Paulo. O educador esteve
recentemente no Brasil a convite do Instituto Península, do Instituto
Singularidades e do Instituto Ayrton Senna para ministrar a palestra “Formação
de professores na atualidade: currículo e formação da identidade docente”.
Existe quem defenda que, para dar
aula, um historiador, por exemplo, não precisa ter licenciatura, mas sim
dominar o conteúdo por meio de uma formação apenas como bacharel. O que
sustenta esse tipo de argumento?
Historicamente, há a ideia de que se
alguém conhece alguma coisa, se alguém sabe de alguma coisa, facilmente
consegue transmitir isso ao outro. E não é verdade, porque profissão de
professor não é o mesmo que transmitir conhecimento, tem toda uma complexidade
muito maior. Para nós [pedagogos, pesquisadores e teóricos da educação], é
claro que não se pode ser professor sem combinar três tipos de conhecimento: saber
muito bem o conteúdo que se vai ensinar – isso é central, se não se souber
muito bem história, não se pode ensinar história; se não se souber muito bem
matemática, não se pode ensinar matemática; ter as bases centrais de tudo o que
é da pedagogia, das teorias da aprendizagem, sobre a maneira como as crianças
aprendem; e depois, ter um conhecimento da profissão, saber como a profissão
funciona na prática, qual é o conhecimento profissional, como se organizar nas
escolas, como qualificar o trabalho. Sem esses tipos de conhecimento, é
impossível ser professor. E quando se desvaloriza um deles, perde-se a dimensão
do que é a formação de professores.
Há a necessidade de convencer os
gestores de que licenciatura é importante dentro do ensino superior?
Historicamente, a universidade
manifestou uma grande indiferença com relação à educação básica. A universidade
nunca se comprometeu com a educação básica, comprometeu-se com outras coisas,
como a ciência, com a cultura em determinados momentos, com a saúde, com a medicina,
mas não com a educação básica. E, assim, também nunca se comprometeu com a
formação de professores da educação básica. Foram formando professores, porque
tinham alunos que apareciam e queriam ser professores. Mas isso nunca
verdadeiramente esteve dentre as preocupações das universidades, e tem de
passar a estar.
Como e por que promover isso?
As universidades têm de decidir se
querem mesmo formar professores. Se querem, têm de fazer isso a sério. E não
estou excluindo ninguém. Quero ter os físicos, os cientistas, os historiadores
e os matemáticos formando professores, porque o conhecimento, a ciência e a
cultura estão nessas dimensões, não estão na pedagogia apenas. Mas, se eles
disserem “formar professores não é a minha preocupação”, nós não iremos conseguir
resolver nada. Se não há formação de professores de qualidade, não há ensino de
qualidade, não há educação básica de qualidade, e continuaremos a nos queixar
de que os alunos chegam às universidades mal preparados, que chegam à faculdade
sem saber matemática, por exemplo. Andamos nessa caixa permanente, uma espécie
de círculo vicioso, que tem de ser cortado de algum lado, e a melhor maneira de
fazer isso é a universidade assumir um maior compromisso com a educação básica.
Mas como as universidades podem
valorizar a formação do professor na prática?
É preciso uma atenção constante. Todos
temos de atuar a partir do nosso lugar na instituição de ensino. Eu não tenho,
de maneira nenhuma, como reitor, como estipular um piso salarial para os
professores de educação básica. Mas, como reitor, eu posso valorizar a formação
de professor na minha instituição, posso lhe dar visibilidade, posso dizer que
essa é a primeira das minhas preocupações, posso receber os estudantes que
estão nas licenciaturas assim que eles entram na faculdade, posso fazer algumas
cerimônias de recepção para esses estudantes, posso canalizar recursos para os
programas de formação docentes. Eu fiz isso. Foi na minha gestão que se criaram
os mestrados em ensino.
Há algo central a ser resolvido quanto
à desvalorização das licenciaturas?
Estou influenciado pela minha
experiência como reitor, mas neste momento acredito que as condições
institucionais são muito importantes. No fundo, se criarmos boas condições
institucionais para essa formação, as
pessoas tenderão a adaptar-se a elas. Acho que o problema principal da formação
inicial de professores é a falta de um lugar dentro das universidades onde se
formam os professores, a falta de uma casa comum. Por que os professores
trabalham nas licenciaturas de biologia, história, matemática separadamente?
Onde está o lugar em que nos sentamos à volta de uma mesa para pensar como se
forma o professor? Esse lugar muitas vezes não existe nas instituições de
ensino superior. Gostaria de convidar as universidades a criarem essa casa
comum para a formação de professores. Pode ser um prédio, um colegiado; cada
universidade decidirá o que quer fazer, mas tem de haver um lugar, um espaço,
onde se reflita sobre essa formação. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
eles estão trabalhando em uma ideia que chamaram de complexo da formação dos
professores.
Quais os exemplos de boas
licenciaturas ao redor do mundo?
Experiências não faltam. O problema é
passar do nível das experiências para coisas que se alargam em outras
realidades do mundo. O projeto francês das Escolas Superiores do Professorado
de Educação é mais avançado e vale a pena ser acompanhado com muito cuidado.
Eles criaram uma escola em cada região da França. Elas têm, lá dentro, os
universitários, os docentes, os professores de escolas e os responsáveis por
políticas públicas de educação. Ou seja, é uma instituição que não é apenas
universidade: é fortemente universitária, tem a dimensão universitária – há
possibilidades de fazer mestrados e doutorados –, é como se fosse uma placa de
ligação entre diversos mundos. Obviamente, não podemos esperar que haja um
único e melhor jeito de formar professores no mundo. Cada país tem a sua
história, os seus processos, os seus desenvolvimentos. O importante é que as
experiências sejam enriquecedoras, boas, positivas.
O que acha das licenciaturas
oferecidas por meio de cursos a distância?
Não é possível formar um professor
exclusivamente a distância. Da mesma maneira que não há cursos a distância para
formar médicos ou arquitetos. A formação de qualquer profissional implica um
contato com a realidade profissional. E ser profissional não é “saber muito
disso, e mais isso e mais outra coisa”, mas sim é ser capaz de integrar
conhecimentos em uma determinada cultura profissional. Mas, logicamente,
devemos recorrer aos meios digitais até onde for possível.
A meta 16 do Plano Nacional de
Educação brasileiro prevê o aumento de professores de educação básica com nível
de mestrado e doutorado. Qual é o melhor caminho para isso, uma vez que esses
pontos já são realidade em Portugal e na Espanha?
É importante haver doutores em
educação para pesquisa, para investigação, para a ciência. Mas não é isso que
vai melhorar substantivamente a qualidade de formação e a atuação de nossos
professores. Podemos reparar que esses objetivos raramente são colocados na
área da medicina, por exemplo. O que importa para os médicos é uma boa formação
inicial de grande qualidade, que forme a pessoa do ponto de vista profissional.
Tudo bem que a pós-graduação para professores em Portugal e na Espanha é uma
formação obrigatória. Mas nesses países a pós-graduação atinge cinco anos de
formação universitária: dá-se o título de graduado ao fim de três anos de
curso, e de mestre ao fim de cinco anos. No fundo, vocês e nós damos nomes
diferentes para a mesma quantidade de anos de formação. Defendo que cinco anos
de formação universitária é um bom tempo para formar um professor. Agora, se
chamarmos isso de mestrado ou de graduação e licenciatura, é indiferente.
A universidade pode ou consegue
ensinar a formar identidade para que se queira ser docente, para que um jovem
se enxergue como docente?
Identidade não se ensina, é um
processo que está sempre em caminho. Portanto, não é um dado adquirido. Nós
temos uma vida inteira em que se constroem e se reconstroem processos
identitários. Mas essa caminhada deve começar no primeiro dia de universidade.
Há maneiras simples para isso. As faculdades de medicina estão dentro de
hospitais. Por que isso? Porque é ali que se dá a profissão e, portanto, muito
naturalmente há um processo de socialização com o futuro ambiente de trabalho.
A primeira coisa que os jovens estudantes de medicina fazem nos primeiros dias
de aula é entrar na universidade com um jaleco de médico e um estetoscópio ao
redor do pescoço. Eles têm 18 anos, não sabem nada de medicina ainda, mas já se
comportam como médicos, já têm um traço identitário como médicos. Mas nas
licenciaturas temos alunos que passam cinco anos na faculdade sem nunca entrar
em uma escola, sem nunca ter contato com um professor ou com um aluno.
Como mudar isso?
É preciso construir essa identidade
profissional desde o primeiro dia de aula, ter um programa de formação docente
em que a reflexão sobre a identidade profissional exista. Nenhum de nós nasce
professor, nós nos tornamos professores. A formação deve ser um processo de
constituição de uma cultura profissional, de um gesto profissional, de uma
maneira de ser profissional. Formar um professor é conseguir que alguém aprenda
a conhecer, a pensar, a sentir e a agir como um profissional docente.