quarta-feira, 29 de março de 2017

Quem sabe faz, quem não sabe ensina!


Roberto DaMatta

 

Liquidar uma universidade é um crime inominável contra a juventude, contra o Brasil e contra o que nos torna humanos: a transmissão do saber


         Para Renato – biólogo, professor que honra a sua universidade, amado filho e amigo querido.
         No dia 13 de março, eu tive a honra de abrir o ano letivo da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) – Universidade Darcy Ribeiro, em Campos dos Goytacazes. O evento foi maquinado por Arno Vogel, colega e ex-aluno; pelo reitor Luis Passoni e pelo professor de Biologia Renato Augusto da Matta, um pioneiro da instituição que, por acaso e para orgulho de quem assina esta coluna, é meu filho e fazia 50 anos.
         E assim eu falei da Antropologia que tenho tentado dignificar para o público mas também, eis a bênção recebida, para a família que constituí.
         Na minha idade, é inevitável não pensar nos abalos das primeiras e últimas vezes. Na noite anterior, veio a mim por inteiro a minha primeira aula de Antropologia Social dada na então Faculdade Fluminense de Filosofia, em Niterói, nos anos 60. Foi quando eu vi o tamanho da minha ignorância. Já na aula magna, a angústia vinha do que falar quando o Brasil é tristemente coberto pelo manto da corrupção como um valor: como uma dimensão que, vergonhosamente, permeia a política e o poder de nossa vida coletiva.
         Aulas magnas ocorrem no início de anos letivos, mas nem todas acontecem em circunstâncias tão adversas, pois o projeto que eu tive o orgulho de inaugurar é parte de uma “resistência” contra a crise. Contra a possibilidade tenebrosa de fechamento da UENF. Uma possibilidade à qual os seus alunos, administradores e professores resolveram resistir.
         Liquidar uma universidade é um crime inominável contra a juventude, contra o Brasil e contra o que nos torna humanos: a transmissão do saber debaixo da égide da compreensão de nós mesmos como sujeitos da nossa própria salvação neste mar ondulado pelas maravilhas e sofrimentos chamado de “vida”.
         Abri minha aula – intitulada “Toda a vida dando aula” – dizendo o seguinte: “A falta de recursos para as universidades é um sinal de como os administradores públicos (os quais, de fato, exprimem crenças, ideais e práticas nacionais) veem o papel dos professores na nossa sociedade”.
         Depois, apoiei enfaticamente a resistência. Uma escola não é uma fábrica. Professores não são donos e alunos, empregados. No mundo do trabalho, essa oposição pode ter a marca da contradição. No universo do ensino, trata-se do justo oposto: o encontro de mestres e alunos promove reversões, e estes tornam-se mestres ainda mais sagazes e cultos do que aqueles. Ideias valem mais do que dinheiro, e a sua mais-valia é uma troca na qual quem não sabia acaba sabendo mais do que o mestre.
         No caso, afirmei, o revolucionário é resistir – continuar a qualquer custo.
         Em seguida lembrei um dos axiomas mais trágicos da vida social brasileira. Um princípio estruturante da nossa concepção de mundo que tento ouvido quando sou apresentado como professor.
         O boçal olha para mim com um misto de pena e desprezo, enche a boca, e arrota: “Quem sabe faz! Quem não sabe, ensina!”
         Fodam-se as escolas, colégios e universidades.
         Como se ensinar não fosse, de fato e de direito, o maior e o mais englobante dos fazeres e como se o fazer fosse possível sem o balizamento da competência, do limite, do desperdício e da dignidade para com o todo ao qual pertencemos. Ora, ensinar é justamente a “teoria-com-a-prática” de fazer enxergar o conjunto. Ensinar é falar de como as coisas começam, onde elas estão, como funcionam e para onde podem ir ou devem seguir. É uma escada construída unindo diferente gerações. Nela, ninguém está parado, e quem está subindo acaba descendo e quem começa termina no alto. É essa movimentação que constitui o ensino, e é nela que se assenta a inovação.
         Neste processo, há balizamentos claros. Ninguém ensina o que não sabe. Ninguém pode desempenhar um papel sem um mínimo de sinceridade. Não há como mudar sem pensar na responsabilidade para com o conjunto: o país, a nossa contemporaneidade, o mundo em que vivemos. Sem essa consciência, verdade e beleza jamais se unem. Pelo contrário, elas são assassinadas, como parece estar ocorrendo neste nosso Brasil.
Roberto DaMatta é antropólogo.


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