Roberto
DaMatta
Liquidar
uma universidade é um crime inominável contra a juventude, contra o Brasil e contra
o que nos torna humanos: a transmissão do saber
Para Renato – biólogo, professor que
honra a sua universidade, amado filho e amigo querido.
No dia 13 de março, eu tive a honra de abrir
o ano letivo da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) – Universidade
Darcy Ribeiro, em Campos dos Goytacazes. O evento foi maquinado por Arno Vogel,
colega e ex-aluno; pelo reitor Luis Passoni e pelo professor de Biologia Renato
Augusto da Matta, um pioneiro da instituição que, por acaso e para orgulho de
quem assina esta coluna, é meu filho e fazia 50 anos.
E assim eu falei da Antropologia que
tenho tentado dignificar para o público mas também, eis a bênção recebida, para
a família que constituí.
Na minha idade, é inevitável não pensar
nos abalos das primeiras e últimas vezes. Na noite anterior, veio a mim por
inteiro a minha primeira aula de Antropologia Social dada na então Faculdade
Fluminense de Filosofia, em Niterói, nos anos 60. Foi quando eu vi o tamanho da
minha ignorância. Já na aula magna, a angústia vinha do que falar quando o
Brasil é tristemente coberto pelo manto da corrupção como um valor: como uma
dimensão que, vergonhosamente, permeia a política e o poder de nossa vida
coletiva.
Aulas magnas ocorrem no início de anos
letivos, mas nem todas acontecem em circunstâncias tão adversas, pois o projeto
que eu tive o orgulho de inaugurar é parte de uma “resistência” contra a crise.
Contra a possibilidade tenebrosa de fechamento da UENF. Uma possibilidade à
qual os seus alunos, administradores e professores resolveram resistir.
Liquidar uma universidade é um crime
inominável contra a juventude, contra o Brasil e contra o que nos torna
humanos: a transmissão do saber debaixo da égide da compreensão de nós mesmos
como sujeitos da nossa própria salvação neste mar ondulado pelas maravilhas e
sofrimentos chamado de “vida”.
Abri minha aula – intitulada “Toda a
vida dando aula” – dizendo o seguinte: “A falta de recursos para as
universidades é um sinal de como os administradores públicos (os quais, de
fato, exprimem crenças, ideais e práticas nacionais) veem o papel dos
professores na nossa sociedade”.
Depois, apoiei enfaticamente a
resistência. Uma escola não é uma fábrica. Professores não são donos e alunos,
empregados. No mundo do trabalho, essa oposição pode ter a marca da
contradição. No universo do ensino, trata-se do justo oposto: o encontro de
mestres e alunos promove reversões, e estes tornam-se mestres ainda mais
sagazes e cultos do que aqueles. Ideias valem mais do que dinheiro, e a sua
mais-valia é uma troca na qual quem não sabia acaba sabendo mais do que o
mestre.
No caso, afirmei, o revolucionário é
resistir – continuar a qualquer custo.
Em seguida lembrei um dos axiomas mais
trágicos da vida social brasileira. Um princípio estruturante da nossa
concepção de mundo que tento ouvido quando sou apresentado como professor.
O boçal olha para mim com um misto de
pena e desprezo, enche a boca, e arrota: “Quem sabe faz! Quem não sabe,
ensina!”
Fodam-se as escolas, colégios e
universidades.
Como se ensinar não fosse, de fato e de
direito, o maior e o mais englobante dos fazeres e como se o fazer fosse
possível sem o balizamento da competência, do limite, do desperdício e da
dignidade para com o todo ao qual pertencemos. Ora, ensinar é justamente a
“teoria-com-a-prática” de fazer enxergar o conjunto. Ensinar é falar de como as
coisas começam, onde elas estão, como funcionam e para onde podem ir ou devem
seguir. É uma escada construída unindo diferente gerações. Nela, ninguém está
parado, e quem está subindo acaba descendo e quem começa termina no alto. É
essa movimentação que constitui o ensino, e é nela que se assenta a inovação.
Neste processo, há balizamentos claros.
Ninguém ensina o que não sabe. Ninguém pode desempenhar um papel sem um mínimo
de sinceridade. Não há como mudar sem pensar na responsabilidade para com o
conjunto: o país, a nossa contemporaneidade, o mundo em que vivemos. Sem essa
consciência, verdade e beleza jamais se unem. Pelo contrário, elas são
assassinadas, como parece estar ocorrendo neste nosso Brasil.
Roberto DaMatta é antropólogo.