Carta aberta à
atriz Denise Fraga
Prezada
atriz Denise Fraga:
Cientista, pesquisador e professor
universitário há 16 anos, no curso de graduação e pós-graduação em Química da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), sou ciente que o fascínio e influência
que causamos (nós, professores) nos alunos são fatores adicionais na
responsabilidade sobre o que, como e quando externamos opiniões pessoais em
salas de aula. Para uma plateia formada por estudantes que se prepararam para
fazer da Química sua profissão, e que portanto têm esta linda ciência como uma
paixão, deslizes por parte daqueles que lhe são exemplos podem causar estragos
indeléveis no futuro. Não me vejo, por exemplo, me permitindo usar um espaço
nobre como o púlpito de uma sala de aula para bradar aos meus alunos de Química
tais considerações: meu filho vai mal em artes. Meu outro filho também vai mal
em artes. Eu fui mal em artes. Me perdoem os artistas, mas alguém poderia me
dizer porque ainda se estuda artes nas escolas?
De tão absurdo e distante daquilo que
acredito, sinto vergonha em ter somente escrito esta barbaridade aí acima. Pois
troque a palavra “artes” pela palavra “química”, e a palavra “artistas” pela
palavra “químicos”, e teremos o início do texto pulicado na Folha de São Paulo
por você, artista Denise Fraga, em sua coluna de 03/08/2014. Mais do que um
púlpito em sala de aula, você usou um espaço nobre destinado a poucos (uma
coluna bissemanal em um dos jornais mais lidos do país) para, baseado na sua
experiência familiar (um filho, outro filho e você mesma), colocar dúvida sobre
a necessidade do ensino de química.
Minha cara artista, permita-me
educadamente discordar de suas opiniões. Ensina-se Química porque a Química é
um dos pilares do conhecimento científico, e portanto, do conhecimento humano.
Ensina-se Química porque o ser humano se diferencia dos outros animais pela
capacidade de pensar, e o aprendizado (qualquer um) é um dos motores do fazer
pensar. Ensina-se química para que todos os cidadãos possam ter o mínimo de
compreensão sobre os fenômenos cotidianos e as coisas que os rodeiam (você
mesmo disse que “tudo tem química”). Ensina-se Química porque o país precisa de
cientistas. Como precisa de artistas. Como precisa de engenheiros. O
desenvolvimento científico é um dos motores para alavancar a economia e
soberania de uma nação. Ensina-se Química pelo mesmo motivo que se ensina
matemática, história, línguas, geografia, e todos os outros conteúdos, no seu
devido tempo, no seu devido momento: a química faz parte da cultura geral. E
também se ensina química para que alguns, no momento certo de escolher o que
querem continuar estudando, possam optar por viver de Química (meu caso), e que
outros, neste mesmo momento, possam optar para nunca mais lembrar que ela
existe (aparentemente o seu caso). E para que aqueles que optam por viver de
Química possam produzir, para todos, novos fármacos para curar e prevenir
doenças; novos materiais para melhorar habitação, vestuário, transporte; novos
processos de descontaminação de águas, solo e atmosfera; novos materiais para
tornar potável a água salobra; novas próteses para aumentar o conforto de
amputados; pele artificial, sangue artificial, órgãos artificiais, para
continuar a vida de desenganados; novas alternativas para produzir mais
alimentos; novas maneiras de gerar energia limpa; novos biocombustíveis; novos
artigos de higiene; novos cosméticos; novas tecnologias para produção de
equipamentos menores e mais sofisticados, que permitem, como mencionastes em
seu texto, buscar informações no bolso a um clique dos dedos. É isso tudo que
nós, químicos, estamos fazendo, sem pedir créditos ou aplausos – daí, talvez, a
sensação de que o ensino de química não é necessário.
A química é absolutamente encantadora.
Uma ciência que está de braços eternamente abertos a quem se dispuser a tentar
compreendê-la. Uma fonte inesgotável de inspiração e de beleza, que vem
caminhando lado a lado com a evolução da humanidade, fornecendo respostas e
alternativas a seus questionamentos. Não é nenhum exagero afirmar que a química
esteve presente, como atriz principal, em todos os grandes acontecimentos da
história, desde o Big Bang – responsável pela criação do Universo -, passando
pela formação das galáxias e planetas, pelo início da vida na Terra, pelo
processo evolutivo que nos trouxe até aqui, e por todas (e absolutamente todas)
as intervenções que a espécie humana realiza e vem realizando no planeta que
lhe deu origem.
Será que estes motivos não são
suficientes para permitir que as novas gerações sejam presenteadas com seu
aprendizado? Mas além desta ciência fascinante, a química corresponde a um dos
maiores motores da economia mundial. No Brasil, o faturamento da indústria
química no ano de 2012 foi de R$ 293 bilhões, um crescimento de 12,4% sobre o
faturamento do ano anterior, que corresponde a 2,5% do PIB brasileiro (9,9% do
PIB das indústrias de transformação), e que a coloca em sexto lugar no
faturamento das indústrias químicas do mundo (atrás de China, EUA, Japão,
Alemanha e Coréia, nesta ordem).
Será que a indignação no seu texto, Denise,
não deveria, na verdade, estar direcionada à “maneira” pela qual alguns
conteúdos são ensinados (decorar tabela periódica, platelmintos, etc)? O grande
debate que devemos abraçar é qual a escola que temos, e qual escola queremos
ter. Por que se ensina como se ensina? Estas são questões fundamentais, que
precisam urgentemente ser colocadas em pauta. Com relação ao ensino de química,
há profissionais maravilhosos espalhados Brasil afora que se preocupam em como
ensinar, e muitos outros profissionais maravilhosos que ensinam como se deve.
Há ações primorosas sendo realizadas na área de ensino e educação em Química no
país, capitaneadas por universidades e instituições como a Sociedade Brasileira
de Química, dentre outras. Discutir a escola que queremos e que precisamos é
função de educadores, políticos, pais e cidadãos preocupados com o futuro desta
nação. E é uma tarefa que exige empenho e dedicação, e que infelizmente não
encontra espaço nas agendas cada vez mais abarrotadas dos nossos cidadãos, principalmente
os mais esclarecidos e que têm algum tipo de palanque.
Minha cara Denise Fraga, seu talento
inquestionável lhe permitiu adotar a arte como profissão. Sorte a nossa,
enquanto plateia, que temos o privilégio de contarmos com suas atuações. A mim
em particular, que fiz teatro amador na escola durante o ensino médio, e que
arranho um violão sem-vergonha nos finais de semana, a arte que você representa
é como o ar que respiro. Choro ou gargalho em cinemas e teatros, me emociono ao
limite em espetáculos musicais, e passo praticamente todos os finais de semana
em museus – práticas que tento diariamente transmitir à minha pequena filha.
Agradeço todos os dias aos meus pais e
aos professores que tive no ensino fundamental e médio (em escola pública,
diga-se de passagem, em Matão-SP), cujas ações corretas me fizeram gostar do
saber (independente da área), e me tornaram um químico que sabe apreciar as
delícias do conhecimento e da cultura. Respeito sua opinião de que o ensino de
química não é necessário, assim como respeito a opinião de inúmeras pessoas que
não veem necessidade em ir ao teatro, museu ou espetáculos musicais. Lamento
profundamente ambos os casos, e luto diariamente para convencer, com
argumentos, que são posturas redondamente equivocadas.
Aldo José Gorgatti Zarbin é
Professor/Pesquisador do Departamento de Química da UFPR e presidente-sucessor
da Sociedade Brasileira de Química (SBQ).
JC Notícias, quinta-feira, 21 de
agosto de 2014.